Para Vitorino Rodrigues: Palmas pra esse brilhante espetáculo teatral que nos despertou tantas emoções!!!

O teatro é um lugar de memória e este espetáculo é rico delas!

Para Vitorino Rodrigues: Palmas pra esse brilhante espetáculo teatral que nos despertou tantas emoções!!!
Foto: Márcio Felipe

O corpo é repleto de memórias e histórias de nossos momentos vividos e emoções, dando continuidade ao que nossos ancestrais percorreram em suas vidas.

No decorrer da cena, palavras são ditas, pensadas , sentidas, fazem parte de marcas refletidas do corpo, fluidas do inconsciente como sonhos, desejos, emoções, traumas, experiências , criatividades, arte e poesia.

São como patrimônio da humanidade, onde está inserida toda nossa história na memória coletiva e arquetípica.

Pierre Nora, historiador francês, dizia que se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Cada gesto e emoção se apresentam como uma identificação carnal dos atos e dos sentidos.

A memória é vida, carregada da dialética das lembranças e do esquecimento(Halbwachs)

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea.

Elas se constroem ou não, quando vivenciamos e experienciamos a vida pelos sentidos: audição, olfato, paladar, visão, ou pelos sentimentos : prazer, dores, traumas, alegrias, tristezas, ou pela sociedade: tragédias, adversidades climáticas, fome, imigração migração, perdas etc.

O teatro é um lugar de memória e este espetáculo é rico delas!

No texto distribuído à plateia fala de história, memória e ancestralidade. Momentos de criação literária, cujo uso das palavras de forma multipla e incessante, denotam a confluência dos pensamentos, emoções e questões contadas pelo coração nordestino de forma poética, triste e saudosa.

Conta sobre a Porciana , mulher que teria sido a primeira a pôr os pés nas glebas para constituir a sociedade ; da morte e derramamento de sangue de seu marido que a deixara sofrer até o fim de sua vida. O cheiro ( olfato) de sangue marcado em sua memória como um episódio jamais esquecido e que a fez mudar de cidade com os filhos na intenção de que tudo fosse “esquecido”.

Como esquecer tal experiência impregnada de dores e memórias até olfativas? Essas “memórias subterrâneas” , parecem “fabulas esquecidas” , mas elas continuam residindo lá no inconsciente, como o carvão vivo de calor e vermelhidão, engana o desavisado quando o vê sob cinzas.

A Porciana é representada como uma ancestral de todos nós. Que “caminha léguas pela natureza espinhosa do cerrado”. Não seria uma alusão aos caminhos percorridos por nós após uma longa caminhada solitária e espinhosa?

Refere-se a carne seca, farinha e água como único alimento na caminhada. Seria só do sertanejo ou de todos aqueles como “os professores “ , muito citados nas falas, que sofrem com a dignidade da resiliência e com os “espinhos” de uma sociedade caótica?

Outra história contada por um velho venezuelano que morava perto de uma aldeia indígena e sobre um filho morto, cujos despojos e pertences são colocados na porta de uma anciã. Então ele reflete: a “morte une os que carregam suas sobras. Pelo menos agora sei onde minha dor nasceu”.

Doeu em mim, doeu em nós. Foi muito forte e denso.

Me lembrei do psicólogo e psiquiatra Carl Jung, que disse: “assim como o corpo humano representa um ‘museu de órgãos’, cada um com um longo período evolutivo por trás dele, deve esperar que a mente também esteja organizada desta forma”.

E ainda enfatiza que o inconsciente coletivo é o centro de todo aquele material psíquico que não surge a partir da experiência pessoal. Seu conteúdo e imagens parecem ser compartilhados por pessoas de todas as épocas e culturas, enquanto o inconsciente pessoal envolve o passado e memórias de cada indivíduo.

Essa minha dor densa e forte é a do sertanejo, do avô contador de histórias, dos professores, dos escritores, da Porciana, do venezuelano, da aldeia indígena, do menino morto e de todos nós!

O lirismo e a poesia não faltaram nesta peça que apesar de despertar sentimentos profundos de nossa terra, evoca saudades com a canção “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão, cantada belamente por Marlene Dietrich e por toda a plateia.

Palmas pra esse brilhante espetáculo teatral que nos despertou tantas emoções!!!

Marcia Pessoa

Museóloga, pesquisadora e professora universitária marciapessoanetto@gmail.com