O QUE TE ESCREVO É PURO CORPO INTEIRO - CRÍTICA - Rodrigo Dourado - Ator, diretor, dramaturgo, professor de teatro da UFPE.
Há algo de beckettiano em “O que te escrevo é puro corpo inteiro”, em temporada no Teatro Dulcina (RJ), direção de Wellington Jr., atuação de Vitorino Rodrigues.
Há algo de beckettiano em “O que te escrevo é puro corpo inteiro”, em temporada no Teatro Dulcina (RJ), direção de Wellington Jr., atuação de Vitorino Rodrigues. Na montagem, os temas da (in)comunicabilidade, da fadiga e da melancolia personificam-se na figura de um professor de literatura aposentado que rumina memórias e pensamentos, um homem cuja erudição se esvai pelo ralo num ambiente medíocre, endereçando ao vazio seus acúmulos intelectuais. A questão do endereçamento é central nesta dramaturgia: para quem? E, portanto, reflete também um problema do próprio teatro. Talvez, por isso, o público seja convocado a subir no palco e ali, na proximidade, ouvir o professor. No oco das cadeiras, frisas e camarotes desocupados, reverbera a voz do ator, que ao propagar-se em velocidade desafia o ritmo da semântica narrativa, fabular. Não se trata de um contador de histórias, mas de um ser ansioso, que tenta capturar algum sentido entre as ideias. A escrita, porém, vacila como suporte para tantos acúmulos, restando-lhe a palavra soprada aos ouvidos moucos. Um aparelho de celular é posicionado em frente ao rosto do ator, e uma boca nervosa em vídeo metralha fonemas vertiginosamente, assemelhando-se à boca do “Não Eu”, de Beckett. Remeto-me à polifonia de vozes no mundo contemporâneo, aos áudios em velocidade acelerada no whatsapp, e à dúvida corrente: “alguém está ouvindo”? A personagem me transporta ainda para ”A última gravação de Krapp”, para a tentativa sempre fracassada de atribuir algum valor à banalidade dos dias. Vitorino e sua persona são boca, mas também são corpo inteiro e, nesse sentido, a direção constrói duas ancoragens interessantes no real, que nos ajudam na individualização dessa voz: memórias familiares e artísticas do performer são trazidas pontualmente; assim como sua origem piauiense e nordestina é invocada em dado momento. Sim, esse erudito exausto pode ser o artista e professor Vitorino; essa periferia que desperdiça o saber do homem culto pode ser alguma cidade no interior do Nordeste. Igualmente, podem se espelhar na própria plateia teatral dos centros urbanos, repleta de eruditos-ilha em busca de alguma partilha.
Rodrigo Dourado - Ator, diretor, dramaturgo, professor de teatro da UFPE.